ORTODONTIA CONTEMPORÂNEA: Anomalias dentárias associadas: o ortodontista decodificando a genética que rege os distúrbios de desenvolvimento dentário

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Anomalias dentárias associadas: o ortodontista decodificando a genética que rege os distúrbios de desenvolvimento dentário


Neste artigo de 2010, publicado pelo Dental Press Journal of Orthodontics, pelos autores Daniela Gamba Garib, Bárbara Maria Alencar, Flávio Vellini Ferreira, Terumi Okada Ozawa; do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais e Faculdade de Odontologia de Bauru – Universidade de São Paulo, Bauru/SP; do curso de mestrado em Ortodontia da Unicid - São Paulo. Versa sobre o diagnóstico e a abordagem ortodôntica das anomalias dentárias, enfatizando os aspectos etiológicos que definem tais irregularidades de desenvolvimento.

Caracterizada por complexos e precisos processos biológicos de substituição de dentes decíduos por dentes permanentes, a dentadura mista representa uma das manifestações de perfeição da natureza. Mas, como todo curso natural, o desenvolvimento da dentição pode mostrar algumas imperfeições e, no transcorrer da dentadura mista – com certa frequência –, o profissional depara-se com irregularidades odontogênicas: as anomalias dentárias. As anomalias expressam-se com distintos graus de severidade. Da manifestação mais branda para a mais severa – representadas, respectivamente, desde o atraso cronológico na odontogênese até a ausência completa do germe dentário ou agenesia –, existe uma miríade de expressões, compreendendo as microdontias, os desvios na morfologia dentária e as ectopias.

A influência de fatores genéticos e ambientais na etiologia das más oclusões representa tema de grande importância na Ortodontia. Quanto maior a contribuição genética na origem de uma irregularidade dentofacial, menor a possibilidade de preveni-la e, como regra, pior o prognóstico de tratamento ortodôntico/ortopédico. E os novos rumos da pesquisa em Odontologia caminham para o conhecimento do genótipo humano. Diversos estudos sugeriram uma tendência genética e hereditária na etiologia das anomalias dentárias de número, tamanho, posição, assim como nos distúrbios de erupção.Tais evidências provêm de investigações em famílias, em gêmeos monozigóticos, e da observação de associações na ocorrência de determinadas anomalias.

Quando uma determinada irregularidade mostra uma prevalência aumentada em famílias de pacientes afetados, comparado às prevalências esperadas para a população em geral, credita-se à genética uma influência predominante na etiologia do problema. O prognatismo mandibular da família imperial austro-húngara Hapsburg representa o mais clássico exemplo de característica genética de interesse ortodôntico, em humanos, transmitida por sucessivas gerações. Muitas das anomalias dentárias discutidas durante esse estudo mostraram prevalências aumentadas em famílias de pacientes afetados. Atualmente, a leitura do código genético pode isolar genes mutantes em famílias, desde que diversos membros expressem a mesma irregularidade.

Certas anomalias dentárias aparecem frequentemente associadas em um mesmo paciente, mais do que se esperaria ao acaso. Isso se explica porque um mesmo defeito genético pode originar diferentes manifestações ou fenótipos, incluindo agenesias, microdontias, ectopias e atraso no desenvolvimento. De uma maneira simplista, poderíamos dizer que um gene “defeituoso”ou mutante pode se expressar diversamente em diferentes dentes permanentes. A associação entre a agenesia unilateral do incisivo lateral superior e a microdontia do incisivo contra lateral, frequentemente observada na rotina clínica, ilustra bem essa condição. Nesse caso, o mesmo defeito genético que determinou a agenesia se expressou de forma incompleta do lado oposto da arcada, ocasionando a microdontia. No entanto, as associações entre as anomalias dentárias não se restringem a esse clássico exemplo. As implicações clínicas são importantes, pois o diagnóstico precoce de uma determinada anomalia dentária pode alertar o profissional para o possível desenvolvimento de outras anomalias associadas, no mesmo paciente ou em familiares, possibilitando o diagnóstico e interceptação ortodôntica oportunos.

Agenesias dentárias

A agenesia dentária constitui a anomalia de desenvolvimento mais comum da dentição humana, ocorrendo em aproximadamente 25% da população. O terceiro molar representa o dente mais afetado por essa anomalia, exibindo uma prevalência de 20,7%. Excluindo-se os terceiros molares, a prevalência de agenesia é de aproximadamente 4,3 a 7,8%.

Microdontia

As agenesias, frequentemente, associam-se a microdontias. A redução no tamanho dentário representa uma expressão parcial do mesmo defeito genético que define a agenesia. Isso explica a clássica associação entre a agenesia unilateral do incisivo lateral superior e a microdontia do dente contralateral. Aproximadamente 20% dos pacientes com agenesia de segundos pré-molares também apresentam microdontia dos incisivos laterais superiores.

Erupção ectópica dos primeirosmolares superiores

Durante o início da dentadura mista, os primeiros molares permanentes irrompem na arcada dentária, guiando-se pela face distal dos segundos molares decíduos. A erupção dos primeiros molares superiores desenha uma trajetória direcionada para oclusal e mesial. Dessa forma, a natureza corrige a disto angulação dos germes no interior do tuber da maxila, e os primeiros molares superiores irrompem com seu longo eixo mais verticalizado em relação ao plano oclusal. Porém, em 4% das crianças, o primeiro molar superior “erra” a sua trajetória eruptiva, desvia-se demasiadamente para mesial e acaba por estimular a reabsorção parcial da raiz dos segundos molares decíduos. Esse distúrbio foi batizado de erupção ectópica dos primeiros molares permanentes. Aproximadamente metade dos casos apresenta um caráter reversível, e o primeiro molar superior acaba por irromper espontaneamente na arcada dentária. Nos casos irreversíveis, os primeiros molares, inaptos a reabsorver o esmalte dentário, permanecem retidos por cervical da coroa dos segundos molares decíduos.

Transposição entre incisivo lateral e canino permanentes inferiores

Conceitua-se como transposição dentária, a ectopia de dentes permanentes que redunda nainversão de suas posições naturais na arcada dentária,no mesmo quadrante. Dois tipos de transposições dentárias são apontados na literatura como apresentando etiologia essencialmente genética e, portanto, comumente associadas a outras anomalias dentárias: a transposição entre canino e primeiro pré-molar na arcada superior, e a transposição entre canino e incisivo lateral permanentes na arcada inferior.

Erupção ectópica dos caninos permanentes superiores

Os caninos superiores representam os dentes que se formam mais distantes da arcada dentária, ladeando a cavidade piriforme e, portanto, desenham o trajeto mais longo de erupção dentre todos os dentes permanentes. Por isso também apresentam a raiz mais longa, comparativamente a toda a dentição permanente. Enquanto se movimentam em direção à cavidade bucal, sua coroa volumosa atravessando o estreito rebordo alveolar superior pode ser palpada sob a mucosa vestibular, acima dos caninos decíduos. Quando essa palpação é positiva, significa que esses dentes apresentam um excelente prognóstico de erupção espontânea. No entanto, em aproximadamente 1,5% da população, os caninos assumem uma trajetória ectópica de erupção, desviando-se para palatino em relação aos incisivos laterais. Ao encontrar uma cortical óssea densa, recoberta por uma mucosa palatina espessa e fibrosa, acabam ficando retidos.

Transposição entre canino e primeiro pré-molar superiores

Excluindo os terceiros molares, os caninos superiores constituem os dentes permanentes que mais frequentemente demonstram distúrbios eruptivos. Além da erupção ectópica por palatino, outra importante, porém bem menos frequente, ectopia que envolve os caninos superiores consiste na transposição entre esse dente e o primeiro prémolar superior. O quadro clínico típico mostra o canino superior permanente irrompido por vestibular entre os dois pré-molares superiores. Frequentemente, o canino apresenta-se girado para distal e o primeiro pré-molar apresenta-se girado para mesial e com uma angulação da coroa para distal. Esse é o tipo de transposição mais comum na espécie humana e acomete aproximadamente de 0,03 a 0,25% da população. Aproximadamente em ¼ dos casos expressa-se bilateralmente, com uma ocorrência predominante no gênero feminino (proporção entre os gêneros = 1,5:1).

Disto angulação do segundo pré-molar inferior

A ectopia mais comumente observada nos segundos pré-molares inferiores refere-se à disto angulação do germe. Tal ectopia relaciona-se coma agenesia do segundo pré-molar inferior homólogo. Shalish et al., numa amostra depacientes com agenesia unilateral dos segundos pré-molares inferiores, observaram que o germe do dente contralateral apresentava-se em média 10º mais angulado para distal, em comparação aum grupo controle sem agenesias. Concluíram, assim, que a disto angulação dos segundos pré-molares inferiores representa um diferente fenótipo ou uma expressão mais branda do mesmo defeito genético que ocasionou a agenesia. Esse tipo de associação assemelha-se muito ao clássico quadro clínico composto pela observação da microdontia do incisivo lateral superior em pacientes com agenesia unilateral do referido dente.

Infra oclusão dos molares decíduos

A infraoclusão dos molares decíduos acomete aproximadamente 8,9% das crianças e caracterizase pela localização da face oclusal dos molares em questão aquém do plano oclusal. Sugere-se que a infra oclusão dos molares represente uma consequência da anquilose dentária. Em algum ponto da raiz, uma ponte de tecido mineralizado substitui o espaço do ligamento periodontal, unindo osso alveolar e cemento. A partir desse momento, o dente inapto a desenvolver-se no sentido vertical vai ficando progressivamente em infraoclusão, à medida que a face cresce.

Atraso no desenvolvimento dentário

Pacientes com agenesia tendem a apresentar um desenvolvimento odontogênico mais lento e a idade dentária atrasada em relação à idade cronológica. Explicada pela inter-relação genética na causalidade dessas anomalias, essa informação merece atenção do clínico. Os jovens com agenesias dentárias geralmente alcançam a maturidade oclusal mais tardiamente. A dentadura permanente pode se completar alguns anos mais tarde do que a idade usual. Porisso, o ortodontista não deve se apressar em iniciara fase 2 do tratamento ortodôntico em tais pacientes. O diagnóstico precoce aliado ao tratamento ortodôntico corretivo tardio representaria a combinação perfeita nos casos com padrão de anomalias dentárias associadas.

Hipoplasia de esmalte

Apesar de ainda constituir um tema não muito explorado pela literatura, existem algumas evidências de que a hipoplasia generalizada do esmalte integra a lista de anomalias dentárias associadas, reguladas geneticamente. Isso porque a hipoplasia de esmalte é diagnosticada, nos casos com anomalias dentárias, mais comumente do que se esperaria ao acaso.


Conclusão

A implicação clínica do padrão de anomalias dentárias associadas é muito relevante, uma vez que o diagnóstico precoce de uma determinada anomalia dentária (como a agenesia de um segundo pré-molar ou a presença de um incisivo lateral superior cônico) pode alertar o clínico da possibilidade de desenvolvimento de outras anomalias associadas no mesmo paciente ou em outros membros da família, permitindo o diagnóstico precocee a intervenção ortodôntica em tempo oportuno.


Link do artigo na Integra via Scielo:

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